quarta-feira, 20 de agosto de 2008

DUAS MULHERES E MEIA



Contam-me uma historia de três mulheres que amavam dois irmãos. Um deles era alto, forte, viril como deviam ser os machos de uma família naquela época. O outro não se dava muito com o rigor da força, era mais sensível e às vezes até chorava. Dado todo o crescimento físico destes dois, saíram de perto de suas fêmeas familiares que, como me contam, pareciam ser mais fortes que todos os homens daquela família, e isso era estranho para época. O mais sensível certa vez conheceu uma jovem moça, e com ela resolveu ficar. Declarou amor, declarou paixão, casou-se sem ao menos questionar o dote, entregou-se como um homem moderno sem fuga do amor. Tempos mais tarde o amor pregou uma peça e esse jovem moderno sucumbiu em desespero, viu sua flor indo embora, viu seu presente maior se esvair, como faz a fumaça dos trens. Foi aí que me contaram que esse jovem saiu a peregrinar em busca de sabe-se lá o quê, ninguém entendia direito, mas ele buscava, todos sabiam que ele buscava, e todos o repreendiam por ninguém saber exatamente o quê. Numa dessas caminhadas pela vida, parou para descansar durante uns dias em uma vila de médio porte e lá encontrou um amigo, de longa data. Um amigo de muito tempo que ele amava muito. Disseram também que na época não se falava muito de amar amigos, mas estes aí, eles se amavam. E numa conversa de bar, depois do saudoso e merecido reencontro o amigo do irmão sensível o convidou para que ficasse em sua choupana e ele aceitou. Nessa estadia na vila conheceu uma outra moça, não tão flor, nem tão moça. Ninguém sabe dizer o que fez ele com ela se envolver, todos sabiam que era da primeira flor toda sua dedicação. Os dias em que ficou na vila o moço fez amigos, bebeu, se deu ao luxo dos prazeres mais mundanos. As pessoas que me contam dizem que ele chorou muito nessa época e começava a se perguntar o qual era mesmo sua busca. Certo dia foi ao seu encontro o irmão viril. Estava ele buscando travessura e a companhia do bom irmão. Encontrou ele, além das travessuras e do irmão sensível, uma moça. Ele começou a amar como o irmão sensível um dia havia lhe explicado e ele não deu votos de confiança. Amou. Amou. E quando achou que não era mais possível viver tanto outra pessoa descobriu a metade que era sua flor. Ela era meia, e pela metade ficou. Chorou. Chorou. Dizem que ele se recuperou depois e que os dois irmãos seguiram a vida. A primeira flor ainda brota no coração do irmão sensível, a segunda tornou-se flor de primavera está presente o ano todo e só floresce na estação e a meia mulher, devassa, traiçoeira e doce vive sua metade mais bonita, como se a outra não tivesse sido nunca descoberta.

domingo, 10 de agosto de 2008

ESPEREMOS - NERUDA

Há outros dias que não têm chegado ainda,
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras
ou o produto das farmácias ou das oficinas
- há fábricas de dias que virão -
existem artesãos da alma
que levantam e pesam e preparam
certos dias amargos ou preciosos
que de repente chegam à porta
para premiar-nos
com uma laranja
ou assassinar-nos de imediato.


Pablo Neruda (Últimos Poemas)

sábado, 9 de agosto de 2008

Morrendo de tédio I: A cicuta.



Mate-me as dez em ponto. Dê-me duas doses de cicuta. Penso que devo morrer Logo que entornar a primeira dose. A segunda é para minha garantia Ou para alguém que queira me acompanhar. Por favor, logo que debruçar meus olhos E minha alma sob o tempo eterno, Deite-me na rua, Em meio ao trânsito Para que saibam quando passarem Pelo meu corpo frio e estendido Que jaz um homem infeliz pelo seu tempo Se ninguém parar diante disso Empurre-me para de baixo de um caminhão Meu corpo dilacerado, com certeza, chamará mais atenção. Afinal a desgraça e os destroços Sempre param os homens. Quando for mutilado este corpo que ainda fala quente, Estarei olhando da calçada As figuras e as vozes de homens, mulheres e criancinha: “– Tinha de ser assim para morrer?” E eu rirei de seus olhos piedosos: “– Eu já estava morto”.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

RODA

Sentemos-nos em roda, diante uns dos outros e conversemos assuntos quaisqueres. Sentemos-nos. Meus entes, meus nossos, meus eus. Agrupem-se para ver em mim o reflexo mais funesto daquilo que os repulsa. Em roda. Sentemos em roda para vermos nossos temores maiores de sermos parecidos com o que nos assusta.Eu me assusto com a maldade por ser maldosa. Eu me assusto com o amor, porque amo. Eu me assusto com a vida porque vivo e, porque vivo, também assusto.

PASSARINHO

Voltou pra mim um passarinho
Que pousou sutilmente na janela.
Comeu do meu jantarFicou por umas noites.
Voltou meu passarinho
Que quase não reconheci,
Parecia ele ter voltado da guerra
Que travara dentro de si.
E no corpo de fora,
As marcas mais dolorosas de uma sofrida batalha,
Seus cabelos mais longos
A barba por fazer
As roupas sobrando vazias de seu corpo antes forte.
Meu passarinho, que nunca fora meu.
Descansou uns dias em meu peito
Dormiu melhor
Esqueceu um pouco do medo
Riu algumas vezes
E precisou de novo ir embora.
Tempos depois de sua voada
Soube pelo rádio:
Meu amor passarinho
Foi baleado mais uma vez,
Estava sangrando
E chorando uma dor na alma
Que o fez querer distância
De sua passarinha-eu
Que aguardava quem sabe
Voar até o ninho de seu amor
Para com ele ficar
E com ele viver uns dias
E depois voar.

HOMENAGEM A EU.



Estou escrevendo a MEU favor, como testemunha única de tudo que vivi presente em cada momento de MIM, vítima e vilã de tudo que aconteceu.Escrevendo para homenagear cada vão momento passado e deixado pra traz, por fazer ser mais importante do que realmente era. Estou escrevendo para homenagear MINHA estupidez e MINHA sagacidade, MINHA violência e MEU pacifismo.Homenageio tudo que há de ruim em MIM, gloriando os MEUS momentos de fúria, MEUS momentos de dor, sendo heroína de MIM mesma, egocêntrica, egoísta, fraca, forte, mulher e homem nesse corpo-carne mal fadado a se rastejar em busca de amor, compreensão e brigas esporádicas para sair da rotina.Homenageio os MEUS pés e MINHA cabeça, que habitando os extremos do MEU corpo dão um jeito de se equilibrarem e me manterem ereta, vigorosa, caminhando. Alem disse tenho na cabeça um samba corrente, quase trilha sonora e homenageio isto também. Como é incrível ter na cabeça o tempo todo uma musica, ouvi-la doce ressoar dentro dos ouvidos e desejar que as outras pessoas também ouçam.Homenageio todas as vezes que me joguei na cama chorando e tantas outras que me joguei na cama querendo e mais todas as inúmeras vezes que me joguei na cama dormindo para ver pela janela clara um dia melhor que todos os outros que passei.Homenageio a MINHA coragem de acordar. Homenageio MINHAS mancadas, MEUS tropeços, MEUS ataques, MINHA baixeza, MINHA falta de escrúpulos. Homenageio o MEU mau gosto para homens, o MEU mau gosto para roupas e MEU péssimo gosto para comida.Sabe o que é ser EU? Pois bem, mereço homenagens mil, daqui até a eternidade porque ser EU não é fácil, não é gostoso, mas EU supero tudo que de EU sai e em Eu entra. Tudo que Eu falo, tudo que EU ouço. De EU pra EU, homenageio a MINHA noite solitária na sela dos MEUS sonhos infelizes e MEUS pecados secretos.Viva o EU, que pra Eu tudo sou.