quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Dilema


Se antes eu cabia nas roupas e acordo um dia sem mais caber, quando se é criança parece normal. Não cabia mais dentro das roupas de 6 anos quando completei os 10, nem cabia mais nas de 10 quando cheguei aos 20 e, por tanto não caber, fui de concha em concha procurar abrigo.
O homem sabe se portar diante de uma situação estranha, dentro do que possa ser social, entre escorregões e saias justas, um homem civilizado faz caber sua boa educação e se livra dos constrangimentos. Eu não cabia.
Mal me acostumara com o que eu pensava nunca cabendo dentro do pensamento, sempre sobrando barbelas, retalhos de coisas que eu não entendia, só sabia daquilo que estava contido na dimensão do pensamento, mas eu pensava maior.
Como se você vestisse botas e seus dedos ficassem para fora, se sente calor nos pés, porem os dedos ficam frios, por estarem sobrando no calçado. Confundo-me tentando explicar.
Eu, desde que nasci, nunca coube em mim, nas dimensões de meu corpo, ou de meu pensamento, como se nunca pudessem acompanhar meu crescimento real como se tudo obrigasse a espremer meu corpo entre paredes,entre pessoas, entre as falas, entre os cães, os dias, os relógios, entre os carros, me forçando ser muito menor do que sou. Hoje diria que meu dilema é ser grande demais, conhecer o limite de tudo e não conhecer de verdade todo o meu complexo organismo e suas possibilidades. Tornei-me um grande boneco, sem ações calculadas, deixando que os espaços me digam o que fazer.
Imagem: Jonathan Braga, parceiro de tantas artista incrível... para mais obras dele:

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

EU ODEIO DRUMMOND.

Sabe quando você não consegue dormir porque tem na cabeça um pensamento-pernilongo, aquele que fica te zunindo as idéias e te chacoalhando quando você ameaça cochilar?
Meu pensamento-pernilongo é o Drummond, filho-da-puta Drummond, não posso lê-lo antes do deitar, se assim faço, vejo clarear o dia como se tivesse tomado dois litros de café.

DIA DESSES

Eu sonhei que ele estava cruzando a porta, a velha porta do velho apartamento da velha cidade de sempre como se ele tivesse voltado do espaço, carregados de pontinhos luminosos pelo corpo, como se tivesse encostado e se sujado de pó de estrela. Ele no meu sonho entrava e dizia que estava de volta, mas que logo iria novamente, o espaço o aguardava e a terra lhe parecia pequena.
Menor era o apartamento que parecia espremê-lo a ponto de fazê-lo sufocar e tossir.
Nesses momentos de tensão ele enfiava a mão por uma bolsa que trazia consigo, tirava de lá um pó e recobria o chão da sala, e dizia que assim se sentia melhor e eu também me sentia inexplicavelmente melhor depois que o pó se depositava calmo sobre o assoalho.
Então, no sonho, ele se deitava e me puxava pra perto e eu mal podia acreditar que ele estava ali de novo, que ele tinha voltado e mais uma vez eu podia abraçá-lo, e mais uma vez podia cheirá-lo como eu fazia, como eu sentia, Meu Deus! Como eu sentia...
E então a gente dormia sobre aquele pó e sobre o chão recoberto por ele, sobre a casa, sobre o telhado, sobre todas as luzes, sobre a terra, sobre os nossos ossos, sobre tudo mais que poderíamos, dormíamos sem dormir, repousávamos no abraço.
Eu acordei. Sentei na cama, me amarrei a lembrança do sonho como um menino a segurar pela linha de uma pipa que vai lá no céu, bem longe, como um menino que não quer se desfazer de um bem tão precioso, eu segurei meu sonho.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008


Mas a pressa que essa calma veio a me atingir que hoje eu canso de tanta calma, de tanto nada pra fazer. A calma veio às pressas e eu afoito a esperá-la. Digo que preferia os tempos de guerra porque assim via cruzar o sol no dia e a noite tinha o porquê descansar.
O tempo me arrebata chicoteando as minhas costas segundo a segundo com seus ponterinhos fininhos como os dedos da morte, como os galhos de uma arvore seca, como as letras escritas num obituário. Cabe a mim nessas tarde longuíssimas escrever um pouco sobre o que mais me afligi e procurar briga com os relógios, como fazem os cachorros pela rua:
-Essa é minha carniça! - puxo eu por um lado de minha vida
-Essa carniça é minha! - rebate o tempo pelo lado oposto.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Dois em Um:



CASO EU PEREÇA.

Caso eu pereça de tanto amor me enterre mesmo que eu ainda respire. Diga que me enterra por conta de uma doença muito grave e contagiosa que me fazia ser muito horrível e deprimentemente rabugenta.

TEMPOS DEPOIS.

Desenterre-me, por favor! A terra úmida sobre minha pele me fez tornar uma ameixa seca. Desenterre-me porque os vermes já comeram o que eu sentia e meu estado avançado de putrefação já não me parece tão feio, não como antes. Sabe que, nesse tempo sob o solo, me tornei mais calma até mais bem humorada.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Carta ao Amigo.



Amigo, estou escrevendo por dois grandes motivos, o primeiro diz respeito ao amor, como era de se esperar, o segundo diz respeito a esta nossa historia.Eu o amo, e assunto primeiro encerrado.Não há porque não dizer, eu grito aos quatro cantos que por você eu morreria, que por você eu tomaria no peito uma bala, no bar uma cerveja, na cara um tapa e mais o que for a onde for, eu tomaria.Se eu morresse hoje deixaria que escrevessem na minha lápide: jaz uma amiga de fulano de tal (escreve aqui teu nome), e deixaria tudo o que me é de valor em testamento para você. Sorte que sabes que o que tenho não é nada mais que duas revistas em quadrinhos, dois bons livros, e um monte de rabisco de papel o que eu sei que para você seria tesouro e por isso seria seu e de mais nenhuma alma.Se eu pudesse agora realizar-te um desejo realizaria aquele que sei que te sufoca e que por vezes te fez chorar, algumas em meu colo.Tiraria todas as suas penas, deixaria somente algumas dores para você não se acostumar a pasmaceira da felicidade plena.Se eu pudesse voltar no tempo teria revivido cada uma de nossas estranhas aventuras com a mesma sede e fé que as vivi até hoje, e faria pior, e melhor e mais intensamente se houvesse como.Implícita nesse meu desejo de comunicar-te meu apreço, está minha saudade e meu respeito, minha estima, minha alma e minha alegria em poder desfrutar (mesmo que raramente) de sua companhia.O segundo assunto também se encerra, e meus braços esperam o teu retorno sorrindo de novo pra mim.
Ao meu doce companheiro que muito já me ajudou nessa vida, por quem eu guardo profunda admiração e amor eterno.


Fer.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

DUAS MULHERES E MEIA



Contam-me uma historia de três mulheres que amavam dois irmãos. Um deles era alto, forte, viril como deviam ser os machos de uma família naquela época. O outro não se dava muito com o rigor da força, era mais sensível e às vezes até chorava. Dado todo o crescimento físico destes dois, saíram de perto de suas fêmeas familiares que, como me contam, pareciam ser mais fortes que todos os homens daquela família, e isso era estranho para época. O mais sensível certa vez conheceu uma jovem moça, e com ela resolveu ficar. Declarou amor, declarou paixão, casou-se sem ao menos questionar o dote, entregou-se como um homem moderno sem fuga do amor. Tempos mais tarde o amor pregou uma peça e esse jovem moderno sucumbiu em desespero, viu sua flor indo embora, viu seu presente maior se esvair, como faz a fumaça dos trens. Foi aí que me contaram que esse jovem saiu a peregrinar em busca de sabe-se lá o quê, ninguém entendia direito, mas ele buscava, todos sabiam que ele buscava, e todos o repreendiam por ninguém saber exatamente o quê. Numa dessas caminhadas pela vida, parou para descansar durante uns dias em uma vila de médio porte e lá encontrou um amigo, de longa data. Um amigo de muito tempo que ele amava muito. Disseram também que na época não se falava muito de amar amigos, mas estes aí, eles se amavam. E numa conversa de bar, depois do saudoso e merecido reencontro o amigo do irmão sensível o convidou para que ficasse em sua choupana e ele aceitou. Nessa estadia na vila conheceu uma outra moça, não tão flor, nem tão moça. Ninguém sabe dizer o que fez ele com ela se envolver, todos sabiam que era da primeira flor toda sua dedicação. Os dias em que ficou na vila o moço fez amigos, bebeu, se deu ao luxo dos prazeres mais mundanos. As pessoas que me contam dizem que ele chorou muito nessa época e começava a se perguntar o qual era mesmo sua busca. Certo dia foi ao seu encontro o irmão viril. Estava ele buscando travessura e a companhia do bom irmão. Encontrou ele, além das travessuras e do irmão sensível, uma moça. Ele começou a amar como o irmão sensível um dia havia lhe explicado e ele não deu votos de confiança. Amou. Amou. E quando achou que não era mais possível viver tanto outra pessoa descobriu a metade que era sua flor. Ela era meia, e pela metade ficou. Chorou. Chorou. Dizem que ele se recuperou depois e que os dois irmãos seguiram a vida. A primeira flor ainda brota no coração do irmão sensível, a segunda tornou-se flor de primavera está presente o ano todo e só floresce na estação e a meia mulher, devassa, traiçoeira e doce vive sua metade mais bonita, como se a outra não tivesse sido nunca descoberta.